quinta-feira, fevereiro 23, 2006

As Matriarcas - I

Lisboa, 1963

... A rua é uma das muitas de Lisboa, da Lisboa do antigamente - casas de estrutura pombalina, passeios calcetados a martelo e pejados de obras canídeas; cheiro a bairro, a fruta e a gritos de pregão.
Vivia-se a ditadura Salazarista e "Deus, Pátria e Família" eram coisas tidas como certas desde os bancos de escola.
As matriarcas avançam no passeio, calmas e decididas - a bisavó, a mãe, a avó (da esq. para a drt.). Três gerações e uma quarta em letargia no carrinho.
Sei que foi dia de baptismo, do meu baptismo - acto incompreensível esse o de verter águas frias e tidas como santas na moleirinha inocente de uma criança! As matriarcas nunca foram dadas a coisas da Igreja mas, conforme os hábitos da época, chamavam por Nossa Senhora nos momentos de aflição e baptizavam os rebentos com devoção estudada e nada sentida.
Na minha família as mulheres sempre prevaleceram. A bisavó, nascida em 1888, até era mansa na sua condição de Doméstica e, apesar de desconhecer o alfabeto, não deixou de proporcionar às filhas a instrução que não tivera. A avó, essa, era um portento de sabedoria e poder de decisão - empregada dos Correios, exímia a operar com o telégrafo e tocadora de bandolim nas horas vagas, casou cedo e arrependeu-se. Foi uma feminista à sua maneira e vituperou, até ao fim dos seus dias, tudo o que era macho. Após a sua morte em 1993, o ceptro passou para as mãos da do meio (da foto) - a minha mãe -, uma Doméstica por imposição, dizia, embora eu não me lembre de ela o ser no verdadeiro sentido do termo. Estudou pouco e a insatisfação pelo seu estado, a par de uma descrença absoluta na pureza das acções humanas tornaram-na temível. Sobre ela falarei depois.
As matriarcas avançam no passeio, calmas e decididas. Não sei quem tirou esta fotografia. Nunca o soube, por distracção. Mas deduzo que tenha sido meu pai. A ver vamos.

1 Comments:

At sábado, 11 março, 2006, Blogger Teresa Durães said...

(quase um mês de atraso em relação a este post...)

Não deixei de sorrir perante o tema "As matriarcas" no seu blog. Por uma razão (sorriso esse, antes de mais, por o ter invocado pela mesma forma como o vejo, como o leio na História de Portugal, a que ultimamente tenho dedicado as minhas vagas):

Tenho duas famílias, como costumo designar - a da capital, do lado da minha mãe, e já só existe a minha mãe, irmãos, filhos e sobrinhos. A segunda é de Ponte de Lima, Minho conservador, católico até ao tutano, onde as tradições, a igreja e "os outros" definem os comportamentos.

Nas duas são as matriarcas que sobrevivem, mandam (mesmo que ninguém se aperceba).

Nas duas, católicas ou não, são os símbolos femininos que prevalecem (a santa, Fátima, Nossa Senhora).

Como se a mulher tivesse sempre uma vontade férrea e sobrevivesse sempre, obstinadamente, às tareias dos maridos, divórcios, à solidão. Gere a casa mas não se intromete na política.

No Minho as mulheres trabalham na terra, cuidam da casa, dos filhos e dos maridos.

Em Lisboa, trabalha-se, cuidam da casa, dos filhos e dos maridos.

A História diz-nos, antes da igreja chegar, que esta terra, onde hoje é postugal, era uma terra onde as tribos veneravam a Deusa Ataegina, deusa da noite, da fertilidade, e também infernal, claro.

Também havia o culto ao Deus Endovellico, Deus do Sol, que guiava a alma ao Outro mundo e enviava os sonhos proféticos.

Na Natureza tem de haver os opostos para haver o equilíbrio.

Segundo Moisés Espirito Santo, sociólogo, os Portugueses nunca deixaram de acreditar nessa entidade feminina apesar da Igreja os ter convertido.

A ligação entre o seu Post e o meu comentário é porque todas as vezes que vejo fotografias como as suas, que podiam ser da minha família, vejo sempre esse espírito, o espírito da mulher eterna portuguesa (lusitana? da Gallecia?) que continua na sua obscuridade a lutar pela tradição (enquanto educa os filhos, põe a mesa, canta o "Lagarto pintado, quem te pintou, foi uma velha que por aqui passou").

Já isso não vejo quando entro no trabalho e vejo a mulher/homem que diz a quem quer ouvir "feminilidade no sentido mais abrangente - ser mãe".

Espere que não pense que eu seja uma fanática de qualquer género. Acredito simplesmente na simplicidade e também na identidade que faz de cada pessoa uma pessoa e que a soma dessas entidades formam um povo. Não acredito, de forma nenhuma, na globalização (aqui pode chamar os nomes que quiser!)

 

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