terça-feira, fevereiro 28, 2006

As matriarcas - II


Avó Ilda, 1932

Em 1932, Portugal vivia o penúltimo ano da Ditadura Militar inaugurada pelo general Gomes da Costa. Salazar era já um promissor ministro. O crash da Bolsa de Nova Iorque ocorrera em 29 e a Europa, tal como outros continentes, estava mergulhada naquela que ficou conhecida como a "Grande Depressão" do sistema capitalista. Lá pelas "Alemanhas" o Partido Nazi, liderado por Adolf Hitler, ganhava as eleições .
A minha avó, nada e criada na capital do ex-Império, rondava os 26 anos e encarava o futuro com o optismismo que uma educação privilegiada lhe concedera. Ao contrário das mulheres do seu tempo, a futura matriarca teve estudos, aprendeu música e empregou-se porque, apesar dos parcos rendimentos, o meu bisavô tinhas ideias revolucionárias para a época - nunca destinou as filhas ao casamento, mas sim à independência. Nos Correios começou como telegrafista (ponto, traço...ponto, traço...dois pontos) e, através daquele aparelhinho aparentemente insignificante, mandou muitas mensagens cujo conteúdo calou e esqueceu por serem os da ditadura. Recordo-me dela, imensa, de bata preta, a circular numa sala que me pareceu enorme, cheia de mulheres também de bata preta...coisa por volta de 1960 e muitos.
Embora destinada à tal independência de que poucas mulheres se podiam gabar naquele tempo, a minha avó casou...e descasou. O meu avô, segundo me disse, era um consolo para as vistas - um loiraço de olho azul, made in Marco de Canavezes -, mas um malandro de primeira. Apareceu-lhe, com uma carta na mão, em horário de expediente e depois disso foram 4 filhas de empreitada que só ela, a minha avó, sustentava. Depois de muitas tareias, de muitas coisas perdidas "no prego" para pagar os excessos de pinga e mulheres, mudou-se a fechadura e o meu avô foi literalmente corrido com um processo de divórcio às costas. E pronto, a Ilda nunca mais quis saber de homem nenhum! Criou as filhas, manteve a sua casa e teve o descanso de uma velhice "bem forrada" com o que foi ganhando nos Correios. Curiosamente e já numa cama de hospital onde aguardava a morte, naqueles entretantos em que a mente se confunde, exclamava: "Vai-te, malandro! Vai-te João!"

Nota: No verso da fotografia pode ler-se:" A João com muita simpatia de Ilda. Lx25/12/932"

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Frango Apicius

O passado sempre exerceu em mim uma atracção irresístivel. Não me refiro àquele passado imediato que vai compondo o nosso cada dia que passa, mas a um muito mais antigo a que chamamos de histórico. Essa atracção levou-me, não apenas a fazer um curso de História, mas a apreciar todo o tipo de legados dos nossos ancestrais (do calhau mal talhado ao pensamento filosófico mais elaborado) e a culinária não é, nem pode ser excepção.
Numa das minhas idas a Conímbriga, resolvi almoçar no restaurante do museu. Escolhi o "Frango Apicius", confeccionado supostamente com base numa receita retirada do De re conquinari libri decen, um tratado de culinária, com mais de 400 receitas, atribuído a Marcus Gavius Apicius (gastrónomo romano do séc. I d.C.). Como me soube bem e me pareceu original vou aqui transcrever a receita, que o restaurante fornece em papel de cobertura do tabuleiro:
Frango Apicius
Num almofariz esmague seis grãos de pimenta vermelha,
uma colher de café de cominhos, outra de erva doce,
umas folhas de hortelã, uma pitada de tomilho
e outra de alecrim.
Num tacho misture um decilitro de vinho branco,
um decilitro de caldo de aves,
três colheres de vinagre.
Leve a ferver e acrescente um punhado de cenoura ralada,
três colheres de mel
e quatro tâmaras descaroçadas e picadas.
Aloure o frango e depois leve-o a estufar naquele molho
num tacho bem tapado, se possível ao forno.
O que veio para a mesa tinha um acrescento que apreciei (couve lombarda estufada no molho, juntamente com o frango) e um acompanhamento que, acho, caiu mal tanto ao paladar como à pretensa historicidade do prato - as batatas fritas. Faltou ainda o vinho, servido como os romanos apreciavam, ou seja, condimentado com ervas e plantas, com flores e frutas e, já agora, apresentado em ânforas. Bom, se o prato vale a pena ou não compete ao Chalabi Red avaliar, até porque foi na sequência das minhas visitas ao seu blogue suculento que me lembrei deste episódio.

Um certo Carnaval.

1982 ou 83, não tenho a certeza. Sei, apenas, que estava decidido que haviamos de ir de freiras. O material era fácil de encontrar, o resto dependia dos nossos dotes para a costura - uns lençóis brancos da minha mãe foram implacavelmente sacrifícados, mais um grande pano preto de proveniência incerta, tudo talhado a golpes de tesoura e depois cozido sem o dedal. E não é que resultou?! Pareciamos três carmelitas (uma era macho) acabadinhas de sair do convento. Só faltava o padre para compôr o ramalhete. Num instante se resolveu o problema - o João vestiu o fato de casamento do meu pai (preto e com cheiro a naftalina), meteu-se-lhe a golinha branca, o terço na mão e toca de ir para a rua. Entre risos e olhares de esguelha enchemos o velho Fiat127, enquanto lá em cima, na varanda do "castelo", a minha mãe gritava: "Vejam lá no que se metem. Tomem cuidado."
A viagem foi curta. O João parou o carro na Gomes Freire, já que a ideia era ir à festança na Faculdade de Medicina Veterinária (naquela altura ao lado do Arquivo de Identificação), e ainda tinhamos de aguardar pela chegada de outros amigos. Estávamos nestes entretantos quando me deu uma irresístivel vontade de fumar...só que não tinha lume. Então, saí do carro, atravessei a rua e fui pedi-lo a uma senhora que se encontrava, do outro lado, à beira do passeio. Ora a dita senhora era uma prostituta no seu honesto mester e eu nem dei conta disso!
Cheguei-me a ela (recordo apenas que escachou os olhos) e estendeu o seu isqueiro a meu pedido (podia ter dado para o torto,mas não deu). Alguns carros abrandaram perante tão insólito cenário - freira e prostituta, qual delas a mascarada, qual delas a verdadeira, ambas ou nenhuma. Do outro lado da rua o velho 127 abanava e o João tapava a cara com as mãos...só depois me explicaram o porquê.

Nota: Tenho uma foto dessa célebre noite, mas anda perdida. Quando a encontrar prego-a aqui.

Carnaval

Veneza, Carnaval

O Carnaval é festa antiga, com mais de dois mil anos. Do que foi, do que é e do que poderia ser, não sei. Por cá ando há muito afastada das coisas carnavalescas embora, confesse, acompanhe as fantochadas políticas deste país.
Não vale a pena pôr-me aqui a resumir aquilo que está mais do que dito, escrito e rebuscado. Quem quiser saber qualquer coisa sobre a origem e história do Carnaval só tem de ir ao Google - com um bocado de paciência descobrem-se teorias interessantes.
O Carnaval é festa, dizia eu. Festa pagã ou de preparo para o que de cristão há-de vir, pouco importa. Como todas as festas inclui muito convívio, dança, barulho e algum (senão muito) sumo de uva fermentado ou aquela mistela a que chamamos "cerveja" e que será tão velha quanto a descoberta da agricultura. Mas há no Carnaval algo que transcende a festa banal - a máscara, o faz de conta. Sim, eu sei. Usam-se máscaras desde sempre, nomeadamente em rituais sagrados ou outros e que nada têm a ver com o Carnaval. Mas a máscara carnavalesca no mundo ocidental ou por ele influenciado, é a subversão do quotidiano, do eu que não mostro todos os dias porque isso iria contra as regras da sociedade em que vivo; é o caricaturar do outro, daquele que eu gostaria de ser ou que, simplesmente, abomino; é chamariz, é o provocar da atenção alheia, depois de um ano de anonimato.
Carnaval é subverter o pré-estabelecido por instantes. É um breve momento de ruptura na forma, no aspecto, na posição social e crítica mordaz, também, dos que detêm o poder e que expomos de forma ridícula em carros alegóricos - " É Carnaval, ninguém leva a mal!"
Roger Caillois publicou, nas vésperas da II Guerra Mundial, um livro intitulado "O Homem e o Sagrado" que procura explicar, entre outros aspectos, essa manifestação sociológica que é a festa:
"À vida regular, ocupada nos trabalhos quotidianos, sossegada, sujeita a um sistema de interditos, cheia de preocupações, em que a máxima quieta non movere mantém a ordem do mundo, opõe-se a efervescência da festa. (...)Actos interditos e actos exagerados não parecem bastar para marcar a diferença entre o tempo do arrebatamento e o tempo da regra. Acrescentam-se-lhes os actos às avessas. As pessoas esforçam-se por se conduzir de forma exactamente contrária ao comportamento normal. A inversão de todas as relações parece a prova evidente do regresso ao Caos (ao princípio de todas as coisas), da época da fluidez e da confusão." (Edições 70, pp.95 a 119)
Creio que Francesco Alberoni também tem qualquer coisa sobre isto.
Do Carnaval à portuguesa, com umas "brasileiras" semi-nuas importadas e artistas de telenovela, fica-me a imagem das criancinhas trajadas a rigor pela "loja do chinês".
Divirtam-se.

Água Benta

Por definição é H2O com poderes transcendentais. Lembro-me de a ver, no interior das Igrejas Católicas, naqueles receptáculos de pedra melhor ou pior talhada e do meu desejo escondido de nela mergulhar as mãos. Quem sabe se algo de milagroso aconteceria?! Quem sabe se de ímpia passaria a santa?! Nunca experimentei tal exorcismo.
Sobre as miraculosas propriedades da água benta muito se tem dito e escrito mas, acerca delas, foi nas palavras de José Vilhena que encontrei a melhor informação:"7 de Março de 308. Alexandre I, grande pontífice e doutor da Igreja, inventa a "água benta", produto que não só repele o demónio como também as pulgas e os chatos e que terá muita procura até à invenção do DDT", in Gaiola Aberta, Março2004

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

As Matriarcas - I

Lisboa, 1963

... A rua é uma das muitas de Lisboa, da Lisboa do antigamente - casas de estrutura pombalina, passeios calcetados a martelo e pejados de obras canídeas; cheiro a bairro, a fruta e a gritos de pregão.
Vivia-se a ditadura Salazarista e "Deus, Pátria e Família" eram coisas tidas como certas desde os bancos de escola.
As matriarcas avançam no passeio, calmas e decididas - a bisavó, a mãe, a avó (da esq. para a drt.). Três gerações e uma quarta em letargia no carrinho.
Sei que foi dia de baptismo, do meu baptismo - acto incompreensível esse o de verter águas frias e tidas como santas na moleirinha inocente de uma criança! As matriarcas nunca foram dadas a coisas da Igreja mas, conforme os hábitos da época, chamavam por Nossa Senhora nos momentos de aflição e baptizavam os rebentos com devoção estudada e nada sentida.
Na minha família as mulheres sempre prevaleceram. A bisavó, nascida em 1888, até era mansa na sua condição de Doméstica e, apesar de desconhecer o alfabeto, não deixou de proporcionar às filhas a instrução que não tivera. A avó, essa, era um portento de sabedoria e poder de decisão - empregada dos Correios, exímia a operar com o telégrafo e tocadora de bandolim nas horas vagas, casou cedo e arrependeu-se. Foi uma feminista à sua maneira e vituperou, até ao fim dos seus dias, tudo o que era macho. Após a sua morte em 1993, o ceptro passou para as mãos da do meio (da foto) - a minha mãe -, uma Doméstica por imposição, dizia, embora eu não me lembre de ela o ser no verdadeiro sentido do termo. Estudou pouco e a insatisfação pelo seu estado, a par de uma descrença absoluta na pureza das acções humanas tornaram-na temível. Sobre ela falarei depois.
As matriarcas avançam no passeio, calmas e decididas. Não sei quem tirou esta fotografia. Nunca o soube, por distracção. Mas deduzo que tenha sido meu pai. A ver vamos.

Intro

Depois de muito ensaiar, amarrotar papel, fazer e desfazer blogues, eis-me aqui com uma determinação de escrita que, espero, se mantenha. Já desisti de me centrar num só tema porque, na verdade, os meus interesses ultrapassam este ou aquele assunto. Também não vou fazer disto um Diário, com os meus quotidianos seleccionados que depois risco e apago por os considerar enfadonhos. Vou devagarinho, palavra por palavra, construíndo a memória das coisas, por muito banais que sejam.