terça-feira, junho 06, 2006

Violência doméstica

Os jornais e as revistas falam dela, da violência doméstica. Sabemos que existe e que não escolhe classes - acontece, simplesmente, entre ricos e pobres, entre cultos e incultos. Sabemos, também, que é demasiado fácil pensar que "portas adentro" não há lei, nem moral que não seja a imposta pelo "código" familiar e que "entre marido e mulher ninguém mete a colher". Tudo fica no segredo dos deuses e da vizinhança, mesmo que haja crianças envolvidas.
Este tema surgiu-me por causa de uma situação que vivenciei há uns 4 anos atrás, difícil de esquecer e que me mantém, de certo modo, alerta pelo receio de uma repetição.
Moro num edifício pacato e no meu patamar existem 3 apartamentos. Um desses apartamentos é habitado por um casal de trinta e tal anos, com 2 filhos menores. Há quatro anos atrás a mais velha das crianças não teria mais do que 4/5 anos e o seu quarto estava ao lado da divisão que me servia de escritório. Naturalmente, no silêncio da noite, todos os sons são ampliados e por isso, muitas vezes, estando eu a trabalhar ouvia as vozes dos meus vizinhos, o ruído das crianças. Mas, o que ouvia, era para mim aterrador - ao deitar a criança tinha birras, chorava, enfim fazia aquele alarido de quem não se quer deitar como muitas fazem e o pai vinha, berrava obscenidades, ameaçava matá-lo...sons abafados...silêncio e mais choro baixinho. Noite após noite a situação repetia-se e eu já nem trabalhar conseguia. Perguntava ao meu marido: "Mas tu não ouves? Isto são lá maneiras de tratar uma criança!". E ele, o meu marido, dizia-me: "Esquece." Não era fácil esquecer e muito menos sentir aquela incerteza de que podia e devia fazer algo...mas que podia ser impressão minha e, sei lá, arranjar problemas a quem não os tinha.
Uma noite, estava eu sózinha em casa, a situação descambou - ouvi claramente gritos abafados de mulher e sons de luta. Assustei-me. Corri para o telefone e liguei para o meu marido: "Vai-te deitar e deixa isso." - disse-me. Não deixei...aquilo não parava. Saí de casa e bati à porta da outra vizinha do patamar: "Ai não me meta nisso...eles que se entendam." Tomei uma decisão e bati à porta dos meus vizinhos gritando: "Pare com isso...não lhe bata mais."
A porta abriu-se e, afogueado, o boçal berrou: "Meta-se na sua vida ou leva também."
Voltei para dentro de casa, peguei no telefone e liguei para a polícia. O diálogo que se segue é no mínimo revoltante:
- Sr. Agente o meu vizinho do lado está a bater na mulher.
- Tenha calma. Já pararam? - respondeu-me a voz ensonada do lado de lá.
- Não sei - disse eu - estou aqui ao telefone consigo.
- Então vá ver e se já pararam descanse.
- Então é assim? Não fazem nada?
- Só se apresentar uma queixa - respondeu o agente.
- Então apresento. Chamo-me .... moro na rua...e quero apresentar queixa relativamente ao andar tal da mesma rua.
- Certo vou mandar aí dois agentes.
Meia hora depois ouvi barulho na escada. Não me contive e abri a porta. Dois agentes da PSP e o meu vizinho trocavam palavras. Um deles disse-me que ficasse dentro de casa, que preservasse o meu anonimato. Não quis: "Assumo a minha queixa...não quero que ele minta." O boçal lá se desvazia em desculpas e ofensas: "Essa senhora é louca. Não se passou aqui nada." A polícia entrou e apenas ouvi "...minha senhora quer ir ao hospital...se voltar a haver queixa você vai preso". Ele chorava, chorava..."é a falta de dinheiro, perdi a cabeça, ela queria pintar o quarto...".
Na manhã seguinte ela bateu-me à porta. Tinha um lado da face negro e disse-me simplesmente obrigada.
Nunca mais ouvi gritos obscenos, insultos ou choros desesperados de criança. A violência acabou ali ao lado. Hoje oiço risos, queixas naturais de miúdos traquinas e a voz de um pai que disciplina com a naturalidade de quem ama os seus. Contudo e quando um grito mais agudo pela calada da noite se faz ouvir, ainda dou por mim com receio de que aquilo se repita (como ontem e daí este post).
Mas não vai repetir-se e sabem porquê? Porque o meu vizinho percebeu, apesar do seu cérebro diminuto, que não pode usar da violência contra os seus sob pena de alguém denunciar os seus actos.
Muitos casos de violência doméstica teriam fim se aqueles que os testemunham tomassem a devida atitude. Na maior parte das vezes as vítimas não se queixam e os maus-tratos perpétuam-se no tempo, perante a indiferença de quem sabe que eles acontecessem. Depois, são as tais notícias da criancinha que morreu, da mulher que levou um tiro...e sim, suspeitava-se de qualquer coisa...a tia desconfiava...a velhota do lado deu conta disto ou daquilo. Que vergonha!

2 Comments:

At terça-feira, 06 junho, 2006, Blogger Teresa Durães said...

que horror... uma vez também ouvi uma berraria num r/c e fiquei a tremer.. mas da janela para a rua via-se a mulher a gritar e o marido calmamente a ver televisão. enfiei-me no carro (ia a sair) e fugi...

é horrível!

 
At quinta-feira, 08 junho, 2006, Blogger isabel mendes ferreira said...

muitos casos de toda e q.q. violência seriam nada se humanizássemos...o que dia a dia fazemos ao contrário....

perdida a alma...ficamos assim. cegos e mudos....soltos na violência parada.


bom dia.

gostei.

 

Enviar um comentário

<< Home